Quem sou eu

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Poeta - escritor - cronista - produtor cultural. Professor de Português e Literaturas. Especialista em Estudos Literários pela FEUC. Especialista em Literaturas Portuguesa e Africanas pela Faculdade de Letras da UFRJ. Mestre e Doutor em Literatura Portuguesa pela UFRJ. Nascido em Goiás, na cidade de Rio Verde. Casado. Pai de três filhos.

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Normas ABNT atualizadíssimas

http://www.pucpr.br/biblioteca/sibi/manual_normas.pdf
Oi pessoal,
normas da ABNT super atualizadas. Não deixem de baixar e de ler.
É só clicar no link.
Abraços.

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Poema: Ansiedade à toda prova - Erivelto Reis

ANSIEDADE À TODA PROVA
Erivelto Reis


O aluno anseia o conceito,
Mas tem medo de pensar na prova
O aluno anseia o sucesso,
E estuda para conquistar a nota.

Ele insiste, aprende, busca o resultado
Determinado a não aceitar derrota.

Essa história nunca vai mudar:
Ansiedade
É saudade do que está por vir...
É pressa de “nunca” chegar.

Minha Poesia - Erivelto Reis

MINHA POESIA
Erivelto Reis



Tem a luz das noites sem lua
Tem o brilho dos dias nublados...

Tem a alegria
Que há nos olhos das mães
Que perderam seus filhos
E o amor
Que não se perdeu nos trilhos...

É complexa
Como um cata-vento
É ampla
Como confinamento
É concreta
Como um pensamento

É certa como andar sem rumo
É rasa como o mar no fundo
É longa como um segundo.

Minha Poesia
Com seus versos, efeitos,
Metáforas e defeitos
É só, é simples,
Pretende ser sincera
E quisera fosse paz
Que não se desfaz com o tempo...

Minha Poesia tem as verdades
Que há no meu silêncio.

Poema: O monólogo das mãos - de Giuseppe Ghiaroni

Monólogo das Mãos

Giuseppe Artidoro Ghiaroni

Para que servem as mãos?
As mãos servem para pedir, prometer, chamar, conceder,
ameaçar, suplicar, exigir, acariciar, recusar, interrogar, admirar,
confessar, calcular, comandar, injuriar, incitar, teimar, encorajar,
acusar, condenar, absolver, perdoar, desprezar, desafiar, aplaudir,
reger, benzer, humilhar, reconciliar, exaltar, construir, trabalhar, escrever......
As mãos de Maria Antonieta, ao receber o beijo de Mirabeau,
salvou o trono da França e apagou a auréola do famoso revolucionário;
Múcio Cévola queimou a mão
que, por engano não matou Porcena;
foi com as mãos que Jesus amparou Madalena;
com as mãos David agitou a funda que matou Golias;
as mãos dos Césares romanos decidiam
a sorte dos gladiadores vencidos na arena;
Pilatos lavou as mãos para limpar a consciência;
os anti-semitas marcavam a porta dos judeus
com as mãos vermelhas como signo de morte!
Foi com as mãos que Judas pôs ao pescoço
o laço que os outros Judas não encontram.
A mão serve para o herói empunhar a espada
e o carrasco, a corda; o operário construir e o burguês destruir;
o bom amparar e o justo punir; o amante acariciar e o ladrão roubar;
o honesto trabalhar e o viciado jogar.
Com as mãos atira-se um beijo ou uma pedra,
uma flor ou uma granada, uma esmola ou uma bomba!
Com as mãos o agricultor semeia e o anarquista incendeia!
As mãos fazem os salva-vidas e os canhões; os remédios
e os venenos; os bálsamos e os instrumentos de tortura,
a arma que fere e o bisturi que salva.
Com as mãos tapamos os olhos para não ver,
e com elas protegemos a vista para ver melhor.
Os olhos dos cegos são as mãos.
As mãos na agulheta do submarino
levam o homem para o fundo como os peixes;
no volante da aeronave atiram-nos para as alturas como os pássaros.
O autor do "Homo Rebus" lembra que a mão
foi o primeiro prato para o alimento
e o primeiro copo para a bebida;
a primeira almofada para repousar a cabeça,
a primeira arma e a primeira linguagem.
Esfregando dois ramos, conseguiram-se as chamas.
A mão aberta,acariciando, mostra a bondade;
fechada e levantada mostra a força e o poder;
empunha a espada, a pena e a cruz!
Modela os mármores e os bronzes;
dá cor às telas e concretiza os sonhos do pensamento e da fantasia
nas formas eternas da beleza.
Humilde e poderosa no trabalho, cria a riqueza;
doce e piedosa nos afetos medica as chagas,
conforta os aflitos e protege os fracos.
O aperto de duas mãos pode ser
a mais sincera confissão de amor,
o melhor pacto de amizade ou um juramento de felicidade.
O noivo para casar-se pede a mão de sua amada;
Jesus abençoava com as mãos;
as mães protegem os filhos
cobrindo-lhes com as mãos as cabeças inocentes.
Nas despedidas, a gente parte,
mas a mão fica, ainda por muito tempo agitando o lenço no ar.
Com as mãos limpamos as nossas lágrimas e as lágrimas alheias.
E nos dois extremos da vida,
quando abrimos os olhos para o mundo
e quando os fechamos para sempre
ainda as mãos prevalecem.
Quando nascemos,
para nos levar a carícia do primeiro beijo,
são as mãos maternas que nos seguram o corpo pequenino.
E no fim da vida, quando os olhos fecham
e o coração pára, o corpo gela
e os sentidos desaparecem,
são as mãos, ainda brancas de cera
que continuam na morte as funções da vida.
E as mãos dos amigos nos conduzem...
E as mãos dos coveiros nos enterram!

CONTO: Luz sob a Porta de Luiz Vilela

LUZ SOB A PORTA
LUIZ VILELA

– E sabem o quê o cara fez? Imaginem só: deu a maior cantada! Lá, gente, na porta da minha casa! Não é ousadia demais?
– E você?
– Eu? Dei té-logo e bença pra ele; engraçadinho, quem que ele pensou que eu era?
– Que eu fosse.
– Quem tá de copo vazio aí?
– Vê se baixa um pouco essa eletrola, quer pôr a gente surdo?
– Você começou a me falar aquela hora...
– Kafka? Estou lendo. O processo. Delirando. Kafka deixa a gente angustiada.
– Já passei minha fase de Kafka. Estou lendo agora é Sartre; O muro, já leu? Bárbaro.
– Gosto mais de A náusea.
– Vocês não vão dançar?
– Toninho, põe os Beatles.
– Escuta essa aqui, gente, escuta só essa aqui, é o máximo; conta, Guido, conta aí...
– Vocês não conhecem? A das duas bichas fazendo tricô?...
¬– Onze e vinte: já vou.
– Você está doido? Agora que a festa começou, agora que está ficando bom; aquelas duas ali que chegaram, viu só que material?... Agora que a coisa está ficando boa, e você vai embora? Pra quê essa pressa?
– Já te falei, é aniversário da minha mãe, preciso ir lá.
– Você vai deixar isso tudo aqui?
– É aniversário dela, não fui lá ainda.
– Você vai amanhã. Será que ela vai morrer se você não for hoje?
– Você não compreende; ela deve estar lá me esperando; eu nunca deixei de ir.
– Você está com algum macete aí fora e não quer contar. Onde já se viu sair de uma festa dessas pra ir na casa da mãe.
– Qual foi o galho aí, gente?
– A mãe do Nélson.
– Quê que houve com sua mãe, Nélson? Ela está doente?
– Ele está dizendo que vai embora; é aniversário dela, ele vai lá. Eu disse pra ele que...
– Embora? De jeito nenhum. Não tem nem uma hora que você chegou aqui.
– Preciso dar uma chegada lá, Maria, é aniversário dela, não fui lá ainda.
– Essa hora? Sua mãe já está dormindo.
– Não está não, eu sei.
– Te garanto. Mais de onze horas. Você vai lá amanhã.
– Vocês não compreendem.
– Complexo de Édipo...
– Não, você não vai embora não. Deixa sua mãe pra depois; que diabo, você está fazendo pouco-caso de minha festa? Vou encher seu copo.
– Não, Maria.
– Deixa de onda, Nélson; enche o copo dela aí, Maria, pode encher.
– Cadê seu copo?
– Não, Maria, já estou indo.
– Poxa, você é casado com sua mãe, ou quê que é?
– Vocês não compreendem.
– Você tem medo de sua te pôr de castigo?
– Tadinho, a mãe dele vai pôr ele de castigo...

Ao sair do táxi, olhou as horas: cinco pra meia-noite.
Havia luz sob a porta, ela estava esperando-o.
– Eu sabia que você vinha.
– A senhora não devia ter-me esperado até essa hora. Mamãe, já é tarde; eu viria amanhã.
– Não estou com sono. E, além disso, eu tinha certeza de que você vinha. Você nunca deixou de vir.
Sentada à mesa, a mãe sorria feliz para ele.
– Veio mais alguém aqui? – ele perguntou.
– Encontrei com a Dulce na porta, ela lembrou e disse que vinha, mas não veio: decerto tornou a esquecer. Pensei também no Rubens; ele sempre vinha, o ano passado mesmo ele veio; mas dessa vez ele também não apareceu, não sei por quê.
– Quer dizer que a senhora passou o dia sozinha?
– Passei, mas não teve importância; eu arranjei uma costurinha para fazer. Pensei que você vinha de tarde e fiquei te esperando; toda hora que eu ouvia passos no corredor, eu pensava que era você; mas depois passou a tarde, e, como você não veio, eu pensei que você tinha deixado pra vir de noite.
– Eu queria vir mais cedo. Se eu tivesse vindo, a senhora não precisaria ficar esse tempo todo me esperando.
– Não estou com sono; gente velha não tem sono.
– A senhora não é velha – beliscou de leve a mão dela, num carinho. – Já falei que a senhora não é velha: a senhora é um broto, viu? Não fale mais que é velha.
A mãe sorriu.
– Comprei umas garrafas de guaraná, para o caso de vir alguém; mas não veio ninguém... Quer tomar uma? Fiz também daqueles biscoitinhos que você gosta...
Ela foi buscar.
Encheu o copo dele.
– E a senhora, não vai tomar?
– À noite não gosto de comer.
– Segunda eu vou trazer um presente pra senhora, hoje de manhã não tive tempo de comprar.
– Incomoda não; eu sei que você não anda bom de dinheiro; eu também não estou precisando de nada. Meu presente é você ter vindo...
– Eu podia ter passado o dia com a senhora.
– Você quase não tem tempo, Nélson.
– À tarde eu tive; eu podia ter vindo.
– Você veio agora, já está bom.
– Se eu tivesse vindo, a senhora não teria passado o dia sozinha.
– Eu arranjei essa costurinha para fazer.
Comeu outro biscoito e tomou um gole de guaraná.
– E o Álvaro? Também não veio?
– O Álvaro? Há tanto tempo que não vejo o Álvaro, tanto tempo que ele não vem aqui... A gente vai ficando velha, os outros vão se afastando...
– A senhora não está velha.
– Estou sim, Nélson; eu sei que é amor de filho, mas eu estou: setenta anos é muita coisa.
– Vovó viveu até os noventa e cinco.
– Eu sei, mas eu não quero viver isso tudo. Depois de certa idade, a gente só dá trabalho aos outros, não quero viver tanto assim.
– Mas eu quero, Mamãe.
– Setenta anos é muito; já basta. A gente começa a se sentir cansada, vai perdendo o gosto pelas coisas. Não quero viver muito tempo.
– Quer sim, Mãe. A senhora tem de querer.
Segurou-lhe o queixo com carinho:
– Tem de querer, viu?
A mãe baixou os olhos: estavam molhados.
– Por que a senhora está chorando?...
– Você demorou tanto, Nélson... Já estava pensando que você não vinha mais...
– Eu nunca deixei de vir, Mamãe.
– Eu sei... Mas você demorou tanto... Você nunca tinha demorado assim... Eu não queria pensar isso, mas você nunca que vinha... Eu te esperava, mas você nunca mais que chegava...
Ela chorava, de cabeça baixa.
– Está bem, Mamãe – disse, pondo a mão no braço dela –; mas agora não chore mais; eu já estou aqui.
– Eu não queria pensar isso... Eu sei que você nunca deixou de vir... Eu não queria pensar isso... mas você estava demorando tanto...
– Está bem; não tem importância. Mas agora não chore mais.

(Tarde da noite. 4. ed. São Paulo, Ática, 1988.)

Conto: Família é uma merda. Rubem Fonseca

Família é uma merda
Rubem Fonseca

Tenho uma saúde de ferro, mas andava sentindo umas dores de cabeça e fui à farmácia comprar aspirina. Foi assim que conheci Genoveva. Ela me perguntou para que eu queria aspirina.

“Para dor de cabeça”.

“Aspirina ataca o estômago”.

Se ela trabalhava numa farmácia devia saber o que estava dizendo.

“Então eu tomo o quê?”

“Tylenol.”

“Já tomei esse troço e não passou a dor” Ficamos batendo um papo, não tinha outros fregueses na farmácia. Ela morava na rua do Camerino, logo no início, perto da farmácia, que ficava na rua Larga, também conhecida como Marechal Floriano. Eu morava no Santo Cristo.

Gostei de Genoveva. Mesmo sem estar com dor de cabeça, voltei à farmácia no dia seguinte.

“Já acabou o Tylenol?”

“Vim só dizer oi para você”.

“Oi.Como é o seu nome?”.

“Valdo”.

“Parece nome de jogador de futebol. Você joga futebol?”

“Jogo. Pelada. Todo brasileiro joga futebol”.

“O meu é Geni”.

Depois desse dia, começamos a namorar O problema é que eu tinha que namorar escondido dos meus irmãos e da minha mãe. Eu gostava da Genoveva, mas ela era feia, nem muito gorda nem muito magra, nem tinha a pele ruim, mas era feia. Não sei como explicar a feiúra da Genoveva. Se fosse uma garota bonita era mais fácil.

Já namorávamos havia dois meses quando Genoveva me disse que a mãe dela queria me conhecer As confusões entre namorados sempre começam quando as famílias se metem no meio. A velha ia achar uma porção de defeitos em mim.

Mas não foi nada disso. A velha disse:

“Genoveva, seu namorado é muito bonito e educado”.

“Mamãe, eu disse a ele que me chamava Geni, a senhora sabe que eu não gosto desse nome.

“Se o moço vai casar com você tem que saber o seu nome verdadeiro.”

“Meu nome também não é Valdo. É Oduvaldo”.

“Acho Oduvaldo bonito’; disse a garota.

“Eu acho Genoveva mais ainda”.

Depois a mãe foi ver televisão no quarto onde as duas dormiam. A casa era pequena. Ficamos sozinhos no sofá da sala e eu não fiz nada. Não fiz nada porque Genoveva era virgem e eu não queria mandar o cabaço dela pro espaço, aquela coisa de a mãe falar em casamento me deixou arrepiado. Tirar cabaço é coisa feita no impulso, e a mulher sempre embucha. Aí o cara tem que casar Eu até casava com Genoveva, se não fosse a minha família. Todo mundo na minha casa era bonito. Como é que eu ia chegar e dizer, olha aqui pessoal, vou casar com esta moça feia? Ainda por cima, no momento nem estou trabalhando, quem me sustenta é o meu irmão que tem um restaurante no Santo Cristo. Ele é casado com uma dona que podia trabalhar no cinema.

Santo Cristo é um lugar perfeito, nasci e me criei lá, não tem boteco, loja, oficina, casa que eu não conheça, pelo menos por fora. Sei onde se pode comer uma boa gororoba, claro que o melhor lugar é o restaurante do meu irmão. Santo Cristo é um paraíso, eu podia passar a vida sem sair do bairro nem para ir à praia. Como é que fui comprar um remédio para dor de cabeça na rua Larga, se Santo Cristo tem suas farmácias? Foi o destino. O destino arma essas coisas pra cima da gente, colocou Genoveva no meu caminho.

“Você não gosta do lugar onde mora?”

“Por quê?”

“Nunca me leva para passear em Santo Cristo”.

“Não gosto daquele bairro. Prefiro a Tijuca. Já morei na rua dos Araújos”.

Era mentira. Eu detestava a Tijuca, mas não queria andar pelo Santo Cristo e ser visto com Genoveva. Quem morava na rua dos Araújos era uma meio-prima minha, a Glorinha, nós namoramos até que eles se mudaram para a Barra e eu inventei que isso complicou o namoro. Foi um pretexto, ela era bonita, gostava de mim, mas eu não gostava dela e dizem que filhos de primos podem nascer aleijados. Meus irmãos, apesar de detestarem a nossa tia, que era irmã da minha mãe por parte de pai, achavam que seria um casamento perfeito para mim. O pai dela, sócio de uma companhia de ônibus na Baixada, podia me arrumar um emprego, já que eu não queria ser garçom no restaurante do meu irmão. Eu não era daqueles caras que inventam que estão desempregados porque não encontram emprego, eu não encontrava mesmo, só não queria ser garçom.

‘‘Você não vai me apresentar sua família? Você nunca fala dela”.

‘‘Qualquer dia desses”.

“Eu te apresentei minha mãe. Não tenho pai. Você tem pai e mãe?”

“Sou igual a você, só tenho mãe. Mas ela não gosta de receber visita”.

“Também não tem irmãos?”

Você nunca conta uma mentira apenas. Vem sempre uma porrada delas, de enxurrada. Acho que eu dizia pelo menos uma mentira por dia para Genoveva. Eu gostava dela, mas não podia gostar dela, uma mulher bonita pode gostar de um homem feio, mas nenhum homem pode gostar de uma mulher feia, o mundo é assim. Se eu tivesse dinheiro para sair de casa, fugia com ela. E o trambolho da mãe, o que a gente ia fazer com aquilo? Quem sustentava a velha era a Genoveva, com a merreca que ganhava na farmácia, e olha que ela era a gerente.

Como diz o ditado, é mais fácil pegar um mentiroso do que um coxo. Coxo é uma espécie de perneta. Um dia fui apanhar Genoveva na farmácia na hora do almoço, íamos comer um sanduíche com caldo de cana num pé-sujo da rua do Acre e descíamos pela rua Larga quando ouvi uma voz:

“Oduvaldo, Oduvaldo”

Reconheci a voz, fingi que não ouvi. Continuei andando, mas Genoveva parou, olhou para trás.

“Tem uma moça te chamando”.

“Moça? Deixa pra lá, vamos embora”.

Mas a minha irmã já tinha chegado perto.

“Hoje é o aniversário de Clodoaldo. Não vá se esquecer Oito horas. Você é meio cabeça-tonta.”

Lá em casa todos os nomes de homem terminam em aldo. E o nome das mulheres em alva.

“Não vai me apresentar a sua amiga?”

“É a moça da farmácia”.

“Eu sou irmã dele. Marialva, muito prazer”.

“Muito prazer, Geni. Pensei que estava viajando”.

“Viajando? Quem me dera.”

“O que você está fazendo aqui na rua Larga?’ perguntei, irritado.

"Vim comprar o presente do Clodoaldo. Você está aborrecido com alguma coisa?”

“Temos que ir, tchau” eu disse, puxando Genoveva.

O caldo de cana naquele dia estava com gosto ruim. Genoveva não comeu o sanduíche. Disse estar sem fome e não falou mais nada. Quando voltávamos para a farmácia, me perguntou:

“Por que você não me apresentou como sua namorada? Moça da farmácia? Moça da farmácia?”

“Eu não quis, sabe como é, dizer assim, sem mais nem menos, esta é minha namorada, minha irmã ia dizer, meu irmão tinha uma namorada e não apresentava para a gente. Sabe como é, ia ficar esquisito”.

“Ela não estava viajando? Ou você está me engrupindo?”

“Que é isso, Genoveva? Está zangada?”

“Estou zangada, sim”.

“Eu um dia te apresento a eles”.

“Por que não me leva no aniversário do, do, como é o nome dele? Do seu irmão”.

“Clodoaldo. Assim, sem mais nem menos?”

“Como, sem mais nem menos? Tem que chegar uma hora para isso”.

“Não sei se a hora certa é numa festa de aniversário sem graça, com bolo e parabéns para você”.

Eu e o Clodoaldo fazíamos anos no mesmo mês, mas Genoveva não sabia disso, eu não podia dizer para ela que minha família ia dar uma festa para mim nos próximos dias, no meu aniversário. Eu não podia levar a garota na minha casa. Família é uma merda.

“Você pensa que eu sou boba, não pensa?”

“Que é isso, Genoveva?”

“Pára de dizer o que é isso. Isso é isso mesmo. Não me leva até a farmácia, quero pensar, você está me atrapalhando”.

Ela saiu correndo, correndo mesmo, como se estivesse disputando os cem metros rasos.

Cheguei às oito em ponto na festa do Clodoaldo, no restaurante dele, fechado para os fregueses naquela noite. Entre os presentes que ganhou, o único mixuruca foi o escudo do Vasco que dei a ele, mas Clodoaldo era um vascaíno fanático e gostou do escudinho, além disso sabia que eu estava na pindaíba. Fiquei espiando a minha família, todo mundo elegante, todos bonitos e bem de vida, a mulher do Clodoaldo era bonita, a do Reinaldo, que tem uma oficina mecânica, era bonita, até minha mãe, que era velha, era bonita, o único que era apenas bonito e não estava se dando bem na vida era eu, mas beleza não põe mesa, a menos que você seja mulher, como dizem.

Além da minha mãe e dos meus irmãos, estavam na festa os amigos deles. Eu não tenho amigos. Vá lá, os amigos deles são também um pouco meus amigos. Todo mundo bebeu, teve cantoria, gargalhadas, tudo numa boa, eu também bebi, mas não adiantou nada, a cerveja e o vinho tiveram o mesmo efeito que chá de agrião, só me deixaram enjoado.

“O Oduvaldo arranjou uma namorada” anunciou Marialva, lá para as tantas.

Todo mundo caiu na minha pele. Disseram um monte de besteiras, contaram piadinhas.

“Esse cara é um moita” disse Ronaldo.

“Quem é a moça?” perguntou minha mãe.

“Trabalha numa farmácia” disse Marialva.

“A Jaqueline? Aquela garota é um anjo”.

“Ela não trabalha na farmácia daqui, mãe. Acho que é numa das farmácias da rua Larga. Os dois estavam andando pela rua Larga. O nome dela é Geni”.

Ouvi mais um monte de piadinhas idiotas. Marialva não contou que Geni era feia. Para falar a verdade, Marialva era legal, estava noiva de um médico, ia casar com ele, o cara estava na festa, era meio prosa, sabe como são esses médicos, mas não era mau sujeito, muito gentil com todos nós, mas graças a Deus eu não precisava dos serviços dele, o cara era médico de hemorróidas. Além de bacana, o puto também era bonito. Porra, tinha gente feia pra caralho no Brasil, menos na minha família? Que merda.

No dia seguinte passei na farmácia. Genoveva estava emburrada.

“O senhor deseja algum produto?”

“Quero falar com você”.

“Não temos nada a conversar. Estou muito ocupada” disse, virando as costas e se escondendo no fundo da farmácia.

Eu estava numa sinuca de bico. Não podia apresentar Genoveva à minha família, eu ia morrer de vergonha, estava também com vergonha de mim mesmo, de ser um babaca, acho que era porque perdi o meu emprego e não conseguia arranjar outro, larguei o colégio no meio porque só gostava de jogar bilhar e bater bola, minha mãe e os meus irmãos deviam me encher de porrada, mas passavam a mão na minha cabeça.

Fiquei rondando a porta da farmácia até a hora de fechar. Quando Genoveva saiu, cheguei perto dela e disse:

“Quero te pedir perdão”.

Nenhuma mulher resiste quando um homem pede perdão. Ela olhou para mim, viu alguma coisa na minha cara e me perdoou.

“Está perdoado” disse, me dando um beijo no rosto.

Perdão eu pedi de verdade, mas o que disse em seguida era meio verdade meio mentira.

“Não te apresentei minha família porque eles são todos metidos a besta, só por isso”. Eles eram mesmo metidos a besta, até minha mãe, que se chamava Ednalva, era metida a besta, mas o motivo não era só esse, era como a minha família ia reagir quando visse a feiúra de Genoveva.

“E qual é o problema de eles serem convencidos? Qual é o problema?”

Consegui driblar o assunto e me separei dela numa boa, mas Genoveva parecia preocupada com alguma coisa.

No dia seguinte ao aniversário de Clodoaldo, me deu uma coisa e eu chamei Marialva para uma conversa particular. Disse a ela que estava apaixonado por Genoveva. Se você quer abrir o seu peito, abra para uma mulher Se ela for sua irmã, é claro. Mãe é mais complicado, mãe é boa numas coisas, noutras é melhor a irmã.

“Aquela moça da rua Larga?” perguntou Marialva.

“Aquela.”

“Muito apaixonado?”

“Loucamente apaixonado. Não posso viver sem ela. Sei que ela é feia, mas
não posso viver sem ela”.

‘‘Existe gente mais feia do que aquela moça".

Depois, Marialva não disse mais nada. Mordeu o beiço de baixo, só isso.

Fiquei andando pela rua, passei na porta do bilhar, resolvi que não ia jogar sinuca nunca mais, nem pelada de futebol, sei que ia sofrer por isso, mas a minha vida já estava mesmo um lixo. Ainda por cima, na quinta-feira era o dia do meu aniversário; a minha família sempre fazia uma festa para mim e eu não ia levar a Genoveva. Se ela soubesse, eu estava frito, Genoveva se chateou só porque não a convidei para o aniversário do Clodoaldo. Eu estava no mato sem cachorro.

Fiquei dois dias sem ver Genoveva. No dia do meu aniversário, cheio de remorso, dei uma passada na farmácia. Pensei que ela ia me dar um esporro, mas me recebeu com um sorriso. Achei esquisito, mas a gente nunca sabe o que uma mulher está pensando.

“Passei aqui só para te dizer que te amo”.

“Mais alguma coisa?”

“Não, só isso. A gente se vê amanhã?”

“Está bom, a gente se vê amanhã” disse ela, sempre rindo. Parecia ter pirado completamente”.

O meu aniversário foi na casa da minha mãe. Eu morava na casa da minha mãe, acontece com os caçulas, ainda mais temporão e desempregado, como eu. Estava a turma toda lá, meus irmãos, as mulheres dos meus irmãos, o doutor da Marialva, aqueles bestalhões todos A festa mal havia começado quando minha mãe disse:

“Marialva, vai pegar o presente do Oduvaldo”.

Minha irmã desapareceu por algum tempo.

A campainha da porta tocou, e todos começaram a cantar, parabéns para você. Aquela musiquinha me dava nojo.

Então minha mãe abriu a porta e surgiu Marialva, puxando Genoveva pela mão.

“Genoveva...? eu disse, surpreso.

“Não tem tanta farmácia assim na rua Larga, foi fácil encontrar a moça” disse Marialva.

Tive vontade de chorar, acho que é porque estava desempregado, e sujeito desempregado fica fraco. Para falar a verdade, meus olhos ficaram úmidos quando abracei Genoveva. Depois abracei os meus parentes e todos cobriram Genoveva de beijos. Minha mãe trouxe um bolo da cozinha, cheio de velas acesas.

Estou casado com Genoveva. Minha família gosta muito dela, dizem que é meiga, prestativa e cuida bem de mim. Trabalho como garçom no restaurante do Clodoaldo. Não é tão ruim assim, ser garçom, e o meu irmão me ofereceu sociedade. Estou dando duro, sem hora para entrar nem sair.

Quem foi que disse que família é uma merda?

Texto extraído do livro Pequenas criaturas, Companhia das Letras - São Paulo, 2002, pág. 32.

Crônica: Recado ao Senhor 903 - Rubem Braga

Recado ao senhor 903
Rubem Braga


Vizinho –

Quem fala aqui é o homem do 1003. Recebi outro dia, consternado, a visita do zelador, que me mostrou a carta em que o senhor reclamava contra o barulho em meu apartamento. Recebi depois a sua própria visita pessoal – devia ser meia-noite – e a sua veemente reclamação verbal. Devo dizer que estou desolado com tudo isso, e lhe dou inteira razão. O regulamento do prédio é explícito e, se não o fosse o senhor ainda teria ao seu lado a Lei e a Polícia. Quem trabalha o dia inteiro tem direito ao repouso noturno e é impossível repousar no 903 quando há vozes, passos e músicas no 1003. Ou melhor: é impossível ao 903 dormir quando o 1003 se agita; pois como não sei o seu nome nem o senhor sabe o meu, ficamos reduzidos a ser dois números, dois números empilhados entre dezenas de outros. Eu, 1003, me limito a Leste pelo 1005, a Oeste pelo 1001, ao Sul pelo Oceano Atlântico, ao Norte pelo 1004, ao alto pelo 1103 e embaixo pelo 903 – que é o senhor. Todos esses números são comportados e silenciosos; apenas eu e o Oceano Atlântico fazemos algum ruído e funcionamos fora dos horários civis; nós dois apenas nos agitamos e bramimos ao sabor da maré, dos ventos e da lua. Prometo sinceramente adotar, depois das 22 horas, de hoje em diante, um comportamento de manso lago azul. Prometo. Quem vier à minha casa (perdão; ao meu número) será convidado a se retirar às 21:45, explicarei: o 903 precisa repousar das 22 às 7 pois às 8:15 deve deixar o l783 para tomar o 109 que o levará até o 527 de outra rua, onde ele trabalha na sala 305. Nossa vida, vizinho, está toda numerada; e reconheço que ela só pode ser tolerável quando um número não incomoda outro número, mas o respeita, ficando dentro dos limites de seus algarismos. Peço-lhe desculpas – e prometo silêncio.
... Mas que me seja permitido sonhar com outra vida e outro mundo, em que um homem batesse à porta do outro e dissesse: “Vizinho, são três horas da manhã e ouvi música em tua casa. Aqui estou”. E o outro respondesse: “Entra, vizinho e come de meu pão e bebe de meu vinho. Aqui estamos todos a bailar e cantar, pois descobrimos que a vida é curta e a lua é bela”.
E o homem trouxesse sua mulher, e os dois ficassem entre os amigos e amigas do vizinho entoando canções para agradecer a Deus o brilho das estrelas e o murmúrio da brisa nas árvores, e o dom da vida, e a amizade entre os humanos, e o amor e a paz.

Crônica: Grande Edgar - Luis Fernando Veríssimo

Grande Edgar - Luis Fernando Veríssimo

Já deve ter acontecido com você.
- Não está se lembrando de mim?
Você não está se lembrando dele. Procura, freneticamente, em todas as fichas armazenadas na memória o rosto dele e o nome correspondente, e não encontra. E não há tempo para procurar no arquivo desativado. Ele está ali, na sua frente, sorrindo, os olhos iluminados, antecipando a sua resposta. Lembra ou não lembra?
Neste ponto, você tem uma escolha. Há três caminhos a seguir. Um, o curto, grosso e sincero.
- Não.
Você não está se lembrando dele e não tem por que esconder isso. O "Não" seco pode até insinuar uma reprimenda à pergunta. Não se faz uma pergunta assim, potencialmente embaraçosa, a ninguém, meu caro. Pelo menos não entre pessoas educadas. Você devia ter vergonha. Não me lembro de você e mesmo que lembrasse não diria. Passe bem.
Outro caminho, menos honesto mas igualmente razoável, é o da dissimulação.
- Não me diga. Você é o... o....
"Não me diga", no caso, quer dizer "Me diga, me diga". Você conta com a piedade dele e sabe que cedo ou tarde ele se identificará, para acabar com a sua agonia. Ou você pode dizer algo como:
- Desculpe, deve ser a velhice, mas...
Esse também é um apelo à piedade. Significa "Não torture um pobre desmemoriado, diga logo quem você é!. É uma maneira simpática de dizer que você não tem a menor ideia de quem ele é, mas que isso não se deve à insignificância dele e sim a uma deficiência de neurônios sua. E há um terceiro caminho. O menos racional e recomendável. O que leva à terapia e à ruína. E o que, naturalmente, você escolhe.
- Claro que estou me lembrando de você!
Você não quer magoá-lo, é isso! Há provas estatísticas de que o desejo de não magoar os outros está na origem da maioria dos desastres sociais, mas você não quer que ele pense que passou pela sua vida sem deixar um vestígio sequer. E, mesmo, depois de dizer a frase não há como recuar. Você pulou no abismo. Seja o que Deus quiser. Você ainda arremata.
- Há quanto tempo!
Agora tudo dependerá da reação dele. Se for um calhorda, ele o desafiará.
Neste caso você não tem outra saída senão simular um ataque cardíaco e esperar, falsamente desacordado, que a ambulância venha salvá-lo. Mas ele pode ser misericordioso e dizer apenas:
- Pois é.
Ou:
- Bota tempo nisso.
Você ganhou tempo para pesquisar melhor a memória. Quem é esse cara, meu Deus? Enquanto resgata caixotes com fichas antigas no meio da poeira e das teias de aranha do fundo do cérebro, o mantém à distância com frases neutras como jabs verbais.
- Como cê tem passado?
- Bem, bem.
- Parece mentira.
- Puxa.
(Um colega da escola. Do serviço militar. Será um parente? Quem é esse cara, meu Deus?)
Ele está falando:
- Pensei que você não fosse me reconhecer...
- O que é isso?!
- Não, porque a gente às vezes se decepciona com as pessoas.
- Eu ia esquecer você? Logo você?
- As pessoas mudam. Sei lá.
- Que ideia!
(É o Ademar! Não, o Ademar já morreu. Você foi ao enterro dele. O... o... como era o nome dele? Tinha uma perna mecânica. Rezende! Mas como saber se ele tem uma perna mecânica? Você pode chutá-lo, amigavelmente. E chuta uma perna. "Que saudade" e paf. chuta a outra. Quem é esse cara?)
- É incrível como a gente perde contato.
- É mesmo.
Uma tentativa. É um lance arriscado, mas nesses momentos deve-se ser audacioso.
- Cê tem visto alguém da velha turma?
- Só o Pontes.
- Velho Pontes!
(Pontes. Você conhece algum Pontes? Pelo menos agora tem um nome com o qual trabalhar. Uma segunda ficha para localizar no sótão. Pontes, Pontes...)
- Lembra do Croaré?
- Claro!
- Esse eu também encontro, às vezes, no tiro al alvo.
- Velho Croaré!
(Croaré. Tiro ao alvo. Você não conhece nenhum Croaré e nunca fez tiro ao alvo. É inútil. As pistas não estão ajudando. Você decide esquecer toda a camada e partir para um lance decisivo. Um lance de desespero. O último, antes de apelar para o enfarte.)
- Rezende...
- Quem?
- Não é ele. Pelo menos isto está esclarecido.
- Não tinha um Rezende na turma?
- Não me lembro.
- Devo estar confundindo.
Silêncio. Você sente que está prestes a ser desmascarado.
Ele fala:
- Sabe que a Ritinha casou?
- Não!
- Casou.
- Com quem?
- Acho que você não conheceu. O Bituca.
Você abandonou todos os escrúpulos. Ao diabo com a cautela. Já que o vexame é inevitável, que ele seja total, arrasador. Você está tomado por uma espécie de euforia terminal. De delírio do abismo. Como que não conhece o Bituca?
- Claro que conheci! Velho Bituca...
- Pois casaram.
É a sua chance. É a saída. Você passa ao ataque.
- E não avisaram nada?!
- Bem...
- Não. Espera um pouquinho. Todas essas coisas acontecendo, a Ritinha casando com o Bituca, o Croarê dando tiro, e ninguém me avisa nada?!
- É que a gente perdeu contato e...
- Mas o meu nome está na lista, meu querido. Era só dar um telefonema. Mandar um convite.
- É...
- E você ainda achava que eu não ia reconhecer você. Vocês é que se esqueceram de mim!
- Desculpe, Edgar. É que...
- Não desculpo não. Você tem razão. As pessoas mudam...
(Edgar. Ele chamou você de Edgar. Você não se chama Edgar. Ele confundiu você com outro. Ele também não tem a mínima ideia de quem você é. O melhor é acabar logo com isso. Aproveitar que ele está na defensiva. Olhar o relógio e fazer cara de "Já?!".)
- Tenho que ir. Olha, foi bom ver você, viu?
- Certo, Edgar. E desculpe, hein?
- O que é isso? Precisamos nos ver mais seguido.
- Isso.
- Reunir a velha turma.
- Certo.
- E olha, quando falar com a Ritinha e o Mutuca...
- Bituca.
- E o Bituca, diz que eu mandei um beijo. Tchau, hein?
- Tchau, Edgar!
Ao se afastar, você ainda ouve, satisfeito, ele dizer "Grande Edgar". Mas jura que é a última vez que fará isso. Na próxima vez que alguém lhe perguntar "Você está me reconhecendo?" não dirá nem sim nem não. Sairá correndo.

Poema: O Cortador de cana - José Caetano Erbas

O CORTADOR DE CANA
JOSÉ CAETANO ERBAS

De supetão eu cheguei à minha terra, encontrei meu pai na guerra sem fuzil e sem canhão. Meu “velho” tava num começo de semana, lá naquele mar de cana no manejo do facão. Ele me disse: “vai falando que eu te escuto, quando eu to nesse chão bruto é pesada a obrigação. Só paro um pouco é no almoço e no café, mesmo assim, como de pé, sob a mira do patrão. Acuado igual um tatu na toca, meu trabalho eu dou em troca de comida e moradia. Mas agradeço a Deus por sua bondade, por saber que nessa idade, ainda tenho serventia. Você bem sabe, eu já fiz oitenta e seis. No dia quatro desse mês, foi aniversário meu. Tudo é bobagem, você sabe que eu não ligo, mesmo assim pensei comigo, ‘meu filho se esqueceu’. Naquela noite do meu aniversário, nas contas do meu rosário, eu lembrei tanto de você. Aliás, eu lembro todo dia, toda hora, peço a Deus e Nossa Senhora pra sempre lhe proteger. E eu, carregando aquela cana como escravo, disse: ‘meu patrão tá bravo’, falta cana pra moer. Lá no engenho, ainda vou maiar feijão na raia, eu vou indo, não arrepara, qualquer dia, nóis se vê”.
E nas valetas encharcadas do mormaço, caminhando passo a passo, na baixada se afundou e lá na frente da colônia da fazenda, já pertinho da moenda, seu chapéu me abanou. Quantas vezes eu quis trazer meu pai comigo. Ele é antigo e de lá não quer sair. Mas um caipira, como é meu velho pai, daquele sertão não sai, não adianta eu pedir.
Depois lá longe, no retrovisor da mente, eu vi meu pai, novamente, dando duro lá no eito. Mas desta vez, ele estava, na verdade, doente da saudade no roçado do meu peito.

terça-feira, 7 de setembro de 2010

Gêneros Discursivos

COSTA,Sérgio Roberto. Dicionário de gêneros textuais. 2 ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009.


QUADRO II (COSTA S., p. 24-25)


CAPACIDADES DE LINGUAGEM
GÊNEROS DISCURSIVOS / TEXTUAIS

ARGUMENTAR
Carta de reclamação
Carta de solicitação
Debate regrado
Discurso de acusação (advocacia)
Discurso de defesa (advocacia) Editorial Dissertação Tese
Textos de opinião Resenha
Texto expositivo, etc.

EXPOR

Artigo enciclopédico
Comunicação oral Conferência
Exposição oral Palestra
Resumo de texto expositivo ou explicativo Relatório científico, etc.

RELATAR

Anedota Caso
Curriculum Vitae
Diário íntimo Notícia
Relatório de experiência
Relato policial
Relato histórico, etc.


NARRAR
Ficção científica Novela Romance Epopeia Biografia Autobiografia Lenda Fábula Contos de fada Contos maravilhosos, etc.

DESCREVER / PRESCREVER AÇÕES OU INSTRUIR
Regras de jogo Receita Regulamento Regimento Manual de instrução
Mandamento, etc.

Gêneros Textuais 1

COSTA, S. Sérgio Roberto. Dicionário de gêneros textuais. 2 ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009.


Quadro I (COSTA S., 2009, p. 20-23):


FORMAÇÕES DISCURSIVAS
DOMÍNIO DISCURSIVO GÊNEROS TEXTUAIS

GÊNEROS DO DISCURSO

RELIGIOSO
Prece/oração
Ladainha
Reza
Sermão
Hagiografia
Parábola
Homilia, etc.

JORNALÍSTICO
Notícia
Reportagem
Editorial
Crônica
Tirinha
Breves/curtas
Artigo jornalístico
Carta de leitor
Entrevista
Debate
Manchete, etc.

ACADÊMICO
Dissertação
Tese
Ensaio
Resumo
Artigo científico
Paper
Sumário
Hand-out
Abstrato
Palestra
Conferência, etc.

LITERÁRIO
Conto
Romance
Novela
Poema
Tragédia
Comédia
Folhetim
Dedicatória
Crônica
Diário
Fábula
Epopeia
Lenda
Biografia
Autobiografia, etc.

ELETRÔNICO/DIGITAL
Chat/bate-papo virtual
Aula chat
E-mail /endereço eletrônico
Blog
Fotoblog
Bâner
Banner
Barra, etc.

PUBLICITÁRIO
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Cartaz
Filmete
Jingle
Outdoor/busdoor/bikedoor/taxidoor
Panfleto
Spot, etc.

COTIDIANO
Conversação e seus tipos
Bilhete
Diário
Anedota
Piada
Anotação
Recado
Convite, etc.

ESCOLAR

Aula
Prova (escrita/oral)
Ditado
Protocolo
Resumo, etc.



Um conto de Carlos Drummond de Andrade

FLOR, TELEFONE, MOÇA
Carlos Drummond de Andrade


Não, não é conto. Sou apenas um sujeito que escuta algumas vezes, que outras não escuta, e vai passando. Naquele dia escutei, certamente porque era a amiga quem falava. É doce ouvir os amigos, ainda quando não falem, porque amigo tem o dom de se fazer compreender até sem sinais. Até sem olhos.

Falava-se de cemitérios? De telefones? Não me lembro. De qualquer modo, a amiga – bom, agora me recordo que a conversa era sobre flores – ficou subitamente grave, sua voz murchou um pouquinho.

– Sei de um caso de flor que é tão triste!

E sorrindo:

– Mas você não vai acreditar, juro.

Quem sabe? Tudo depende da pessoa que conta, como do jeito de contar. Há dias em que não depende nem disso: estamos possuídos de universal credulidade. E daí, argumento máximo, a amiga asseverou que a história era verdadeira.

– Era uma moça que morava na Rua Gerenal Polidoro, começou ela. Perto do Cemitério São João Batista. Você sabe, quem mora por ali, queira ou não queira, tem de tomar conhecimento da morte. Toda hora está passando enterro, e a gente acaba por se interessar. Não é tão empolgante como navios ou casamentos, ou carruagem de rei, mas sempre merece ser olhado. A moça, naturalmente, gostava mais de ver passar enterro do que não ver nada. E se fosse ficar triste diante de tanto corpo desfilando, havia de estar bem arranjada.

Se o enterro era mesmo muito importante, desses de bispo ou de general, a moça costumava ficar no portão do cemitério, para dar uma espiada. Você já notou como coroa impressiona a gente? Demais. E há a curiosidade de ler o que está escrito nelas. Morto que dá pena é aquele que chega desacompanhado de flores – por disposição de família ou falta de recursos, tanto faz. As coroas não prestigiam apenas o defundo, mas até o embalam. Às vezes ela chegava a entrar no cemitério e a acompanhar o préstimo até o lugar do sepultamento. Deve ter sido assim que adquiriu o costume de passear lá por dentro. Meu Deus, com tanto lugar pra passear no Rio! E no caso da moça, quando estivesse mais amolada, bastava tomar um bonde em direção à praia, descer no Mourisco, debruçar-se na amurada. Tinha o mar à sua disposição, a cinco minutos de casa. O mar, as viagens, as ilhas de coral, tudo grátis. Mas por preguiça pela curiosidade dos enterros, sei lá por quê, deu para andar em São João Batista, contemplando túmulo. Coitada!

– No interior isso não é raro…

– Mas a moça era de Botafogo.

– Ela trabalhava?

– Em casa. Não me interrompa. Você não vai me pedir certidão de idade da moça, nem sua descrição física. Para o caso que estou contando, isso não interessa. O certo é que de tarde costumava passear – ou melhor, “deslizar” pelas ruinhas brancas do cemitério, mergulhada em cisma… Olhava uma inscrição, ou não olhava, descobria uma figura de anjinho, uma coluna partida, uma águia, comparava as covas ricas às covas pobres, fazia cálculos de idade dos defuntos, considerava retratos em medalhões – sim, há de ser isso que ela fazia por lá, pois que mais poderia fazer? Talvez mesmo subisse ao morro, onde está a parte nova do cemitério, e as covas mais modestas. E deve ter sido lá que, uma tarde, ela apanhou a flor.

– Que flor?

– Uma flor qualquer. Margarida, por exemplo. Ou cravo. Para mim foi margarida, mas é puro palpite, nunca apurei. Apanhou com esse gesto vago e maquinal que a gente tem diante de um pé de flor. Apanha, leva ao nariz – não tem cheiro, como inconscientemente já esperava –, depois amassa a flor, joga para um canto. Não se pensa mais nisso.

Se a moça jogou a margarida no chão do cemitério ou no chão da rua, quando voltou para casa, também ignoro. Ela mesma se esforçou mais tarde por esclarecer esse ponto, mas foi incapaz. O certo é que já tinha voltado, estava em casa bem quietinha havia poucos minutos, quando o telefone tocou, ela atendeu.

– Aloooô…

– Quede a flor que você tirou de minha sepultura?

A voz era longínqua, pausada, surda. Mas a moça riu. E, meio sem compreender:

– O quê?

Desligou. Voltou para o quarto, para as suas obrigações. Cinco minutos depois, o telefone chamava de novo.

– Alô.

– Quede a flor que você tirou de minha sepultura?

Cinco minutos dão para a pessoa mais sem imaginação sustentar um trote. A moça riu de novo, mas preparada.

– Está aqui comigo, vem buscar.

No mesmo tom lento, severo, triste, a voz respondeu:

– Quero a flor que você me furtou. Me dá minha florzinha.

Era homem, era mulher? Tão distante, a voz fazia-se entender, mas não se identificava. A moça topou a conversa:

– Vem buscar, estou te dizendo.

– Você bem sabe que eu não posso buscar coisa nenhuma, minha filha. Quero minha flor, você tem obrigação de devolver.

– Mas quem está falando aí?

– Me dá minha flor, eu estou te suplicando.

– Diga o nome, senão eu não dou.

– Me dá minha flor, você não precisa dela e eu preciso. Quero minha flor, que nasceu na minha sepultura.

O trote era estúpido, não variava, e moça, enjoando logo, desligou. Naquele dia não houve mais nada.

Mas no outro dia houve. À mesma hora o telefone tocou. A moça, inocente, foi atender.

– Alô!

– Quede a flor…

Não ouviu mais. Jogou o fone no gancho, irritada. Mas que brincadeira é essa! Irritada voltou à costura. Não demorou muito, a campainha tinia outra vez. E antes que a voz lamentosa recomeçasse:

– Olhe, vire a chapa, já está pau.

– Você tem que dar conta de minha flor, retrucou a voz de queixa. Pra que foi mexer logo na minha cova? Você tem tudo no mundo, eu, pobre de mim, já acabei. Me faz muita falta aquela flor.

– Essa é fraquinha. Não sabe de outra?

E desligou. Mas, voltando ao quarto, já não ia só. Levava consigo a idéia daquela flor, ou antes, a idéia daquela pessoa idiota que a vira arrancar uma flor no cemitério, e agora a aborrecia pelo telefone. Quem poderia ser? Não se lembrava de ter visto nenhum conhecido, era distraída por natureza. Pela voz não seria fácil acertar. Certamente se tratava de voz disfarçada, mas tão bem que não se podia saber ao certo se de homem ou de mulher. Esquisito, uma voz fria. E vinha de longe, como de interurbano. Parecia vir de mais longe ainda… Você está vendo que a moça começou a ter medo.

– E eu também.

– Não seja bobo. O fato é que aquela noite ela custou a dormir. E daí por diante é que não dormiu mesmo nada. A perseguição telefônica não parava. Sempre à mesma hora, no mesmo tom. A voz não ameaçava, não crescia de volume: implorava. Parecia que o diabo da flor constituía para ela a coisa mais preciosa do mundo, e que seu sossego eterno – admitindo que se tratasse de pessoa morta – ficara dependendo da restituição de uma simples flor. Mas seria absurdo admitir tal coisa, e a moça, além do mais, não queria se amofinar. No quinto ou sexto dia, ouviu firme a cantilena da voz e depois passou-lhe uma bruta descompostura. Fosse amolar o boi. Deixasse de ser imbecil (palavra boa, porque convinha a ambos os sexos). E se a voz não se calasse, ela tomaria providências.

A providência consistiu em avisar o irmão e depois o pai. (A intervenção da mãe não abalara a voz.) Pelo telefone, pai e irmão disseram as últimas à voz suplicante. Estavam convencidos de que se tratava de algum engraçado absolutamente sem graça, mas o curioso é que, quando se referiam a ele, diziam “a voz”.

– A voz chamou hoje? Indagava o pai, chegando da cidade.

– Ora. É infalível, suspirava a mãe, desalentada.

Descomposturas não adiantavam, pois, ao caso. Era preciso usar o cérebro. Indagar, apurar na vizinhança, vigiar os telefones públicos. Pai e filho dividiram entre si as tarefas. Passaram a freqüentar as casas de comércio, os cafés mais próximos, as lojas de flores, os marmoristas. Se alguém entrava e pedia licença para usar o telefone, o ouvido do espião se afiava. Mas qual. Ninguém reclamava flor de jazigo. E restava a rede dos telefones particulares. Um em cada apartamento, dez, doze no mesmo edifício. Como descobrir?

O rapaz começou a tocar para todos os telefones da Rua General Polidoro, depois para todos os telefones das ruas transversais, depois para todos os telefones da linha dois-meia… Discava, ouvia o alô, conferia a voz – não era –, desligava. Trabalho inútil, pois a pessoa da voz devia estar ali por perto – o tempo de sair do cemitério e tocar para a moça – e bem escondida estava ela, que só se fazia ouvir quando queria, isto é, a uma certa hora da tarde. Essa questão de hora também inspirou à família algumas diligências. Mas infrutíferas.

Claro que a moça deixou de atender telefone. Não falava mais nem com as amigas. Então a “voz”, que não deixava de pedir, se outra pessoa estava no aparelho, não dizia mais “você me dá minha flor”, mas “quero minha flor”, “quem furtou minha flor tem que restituir”, etc. Diálogo com essas pessoas a “voz” não mantinha. Sua conversa era com a moça. E a “voz” não dava explicações.

Isso durante quinze dias, um mês, acaba por desesperar um santo. A família não queria escândalos, mas teve de queixar-se à polícia. Ou a polícia estava muito ocupada em prender comunista, ou investigações telefônicas não eram sua especialidade – o fato é que não se apurou nada. Então o pai correu à Companhia Telefônica. Foi recebido por um cavalheiro amabilíssimo, que coçou o queixo, aludiu a fatores de ordem técnica…

– Mas é a tranqüilidade de um lar que eu venho pedir ao senhor! É o sossego de minha filha, de minha casa. Serei obrigado a me privar de telefone?

– Não faça isso, meu caro senhor. Seria uma loucura. Aí é que não se apurava mesmo nada. Hoje em dia é impossível viver sem telefone, rádio e refrigerador. Dou-lhe um conselho de amigo. Volte para sua casa, tranqüilize a família e aguarde os acontecimentos. Vamos fazer o possível.

Bem, você já está percebendo que não adiantou. A voz sempre mendigando a flor. A moça perdendo o apetite e a coragem. Andava pálida, sem ânimo para sair à rua ou para trabalhar. Quem disse que ela queria mais ver enterro passando? Sentia-se miserável, escravizada a uma voz, a uma flor, a um vago defunto que nem sequer conhecia. Porque – já disse que era distraída – nem mesmo se lembrava da cova de onde arrancara aquela maldita flor. Se ao menos soubesse…

O irmão voltou do São João Batista dizendo que, do lado por onde a moça passeara aquela tarde, havia cinco sepulturas plantadas. A mãe não disse coisa alguma, desceu, entrou numa casa de flores da vizinhança, comprou cinco ramalhetes colossais, atravessou a rua como um jardim vivo e foi derramá-los votivamente sobre os cinco carneiros. Voltou para casa e ficou à espera da hora insuportável. Seu coração lhe dizia que aquele gesto propiciatório havia de aplacar a mágoa do enterrado – se é que os mortos sofrem, e aos vivos é dado consolá-los, depois de os haver afligido.

Mas a “voz” não se deixou consolar ou subornar. Nenhuma outra flor lhe convinha senão aquela, miúda, amarrotada, esquecida, que ficara rolando no pó e já não existia mais. As outras vinham de outra terra, não brotavam de seu estrume – isso não dizia a voz, era como se dissesse. E a mãe desistiu de novas oferendas, que já estavam no seu propósito. Flores, missas, que adiantava?

O pai jogou a última cartada: espiritismo. Descobriu um médium fortíssimo, a quem expôs longamente o caso, e pediu-lhe que estabelecesse contato com a alma despojada de sua flor. Compareceu a inúmeras sessões, e grande era sua fé de emergência, mas os poderes sobrenaturais se recusaram a cooperar, ou eles mesmos são impotentes, quando alguém quer alguma coisa até sua última fibra, e a voz continuou, surda, infeliz, metódica. Se era mesmo de vivo (como às vezes a família ainda conjeturava, embora se apegasse cada dia mais a uma explicação desanimadora, que era a falta de qualquer explicação lógica para aquilo), seria de alguém que houvesse perdido toda noção de misericórdia; e se era de morto, como julgar, como vencer os mortos? De qualquer modo, havia no apelo uma tristeza úmida, uma infelicidade tamanha que fazia esquecer o seu sentido cruel, e refletir: até a maldade pode ser triste. Não era possível compreender mais do que isso. Alguém pede continuamente uma certa flor, e esta flor não existe mais para lhe ser dada. Você não acha inteiramente sem esperança?

– Mas, e a moça?

– Carlos, eu preveni que meu caso de flor era muito triste. A moça morreu no fim de alguns meses, exausta. Mas sossegue, para tudo há esperança: a voz nunca mais pediu.

Um conto de Lygia Fagundes Telles

VENHA VER O PÔR-DO-SOL

TELLES, Lygia Fagundes. Venha ver o pôr-do-sol. In: ______. Mistérios. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981. p. 203-212.
Ela subiu sem pressa a tortuosa ladeira. À medida que avançava, as casas iam rareando, modestas casas espalhadas sem simetria e ilhadas em terrenos baldios. No meio da rua sem calçamento, coberta aqui e ali por um mato rasteiro, algumas crianças brincavam de roda. A débil cantiga infantil era a única nota viva na quietude da tarde.
Ele a esperava encostado a uma árvore. Esguio e magro, metido num largo blusão azul marinho, cabelos crescidos e desalinhados, tinha um jeito jovial de estudante.
– Minha querida Raquel.
Ela encarou-o, séria. E olhou para os próprios sapatos.
– Veja que lama. Só mesmo você inventaria um encontro num lugar destes. Que idéia, Ricardo, que idéia! Tive que descer do táxi lá longe, jamais ele chegaria aqui em cima.
Ele riu entre malicioso e ingênuo.
–Jamais? Pensei que viesse vestida esportivamente e agora me aparece nessa elegância! Quando você andava comigo, usava uns sapatões de sete léguas, lembra?
–Foi para me dizer isso que você me fez subir até aqui? – perguntou ela, guardando as luvas na bolsa. Tirou um cigarro. – Hein?!
–Ah, Raquel... – e ele tomou-a pelo braço. Você está uma coisa de linda. E fuma agora uns cigarrinhos pilantras, azul e dourado... Juro que eu tinha que ver ainda uma vez toda essa beleza, sentir esse perfume. Então? Fiz mal?
–Podia ter escolhido um outro lugar, não? – Abrandara a voz. – E que é isso aí? Um cemitério?
Ele voltou-se para o velho muro arruinado. Indicou com o olhar o portão de ferro, carcomido pela ferrugem.
–Cemitério abandonado, meu anjo. Vivos e mortos, desertaram todos. Nem os fantasmas sobraram, olha aí como as criancinhas brincam sem medo acrescentou apontando as crianças na sua ciranda.
Ela tragou lentamente. Soprou a fumaça na cara do companheiro.
–Ricardo e suas idéias. E agora? Qual o programa?
Brandamente ele a tomou pela cintura.
–Conheço bem tudo isso, minha gente está, enterrada aí. Vamos entrar um instante e te mostrarei o pôr-do-sol mais lindo do mundo.
Ela encarou-o um instante. Envergou a cabeça para trás numa risada.
–Ver o pôr-do-sol!... Ali, meu Deus... Fabuloso, fabuloso!... Me implora um último encontro, me atormenta dias seguidos, me faz vir de longe para esta buraqueira, só mais uma vez, só mais uma! E para quê? Para ver o pôr-do-sol num cemitério...
Ele riu também, afetando encabulamento como um menino pilhado em falta.
–Raquel, minha querida, não faça assim comigo. Você sabe que eu gostaria era de te levar ao meu apartamento, mas fiquei mais pobre ainda, como se isso fosse possível. Moro agora numa pensão horrenda, a dona é uma Medusa que vive espiando pelo buraco da fechadura...
–E você acha que eu iria?
–Não se zangue, sei que não iria, você está sendo fidelíssima. Então pensei, se pudéssemos conversar um pouco numa rua afastada... _ disse ele, aproximando-se mais.
Acariciou-lhe o braço com as pontas dos dedos. Ficou sério. E aos poucos, inúmeras rugazinhas foram-se formando em redor dos seus olhos ligeiramente apertados. Os leques de rugas se aprofundaram numa expressão astuta. Não era nesse instante tão jovem como aparentava. Mas logo sorriu e a rede de rugas desapareceu sem deixar vestígio. Voltou-lhe novamente o ar inexperiente e meio desatento. _ Você fez bem em vir.
–Quer dizer que o programa... E não podíamos tomar alguma coisa num bar?
–Estou sem dinheiro, meu anjo, vê se entende.
–Mas eu pago.
–Com o dinheiro dele? Prefiro beber formicida. Escolhi este passeio porque é de graça e muito decente, não pode haver um passeio mais decente, não concorda comigo? Até romântico.
Ela olhou em redor. Puxou o braço que ele apertava.
–Foi um risco enorme, Ricardo. Ele é ciumentíssimo. Está farto de saber que tive meus casos. Se nos pilha juntos, então sim, quero só ver se alguma das suas fabulosas ideias vai me consertar a vida.
–Mas me lembrei deste lugar justamente porque não quero que você se arrisque, meu anjo. Não tem lugar mais discreto do que um cemitério abandonado, veja, completamente abandonado – prosseguiu ele, abrindo o portão. Os velhos gonzos gemeram. – Jamais seu amigo ou um amigo do seu amigo saberá que estivemos aqui.
–É um risco enorme, já disse. Não insista nessas brincadeiras, por favor. E se vem um enterro? Não suporto enterros.
Mas enterro de quem? Raquel, Raquel, quantas vezes preciso repetir a mesma coisa?! Há séculos ninguém mais é enterrado aqui, acho que nem os ossos sobraram, que bobagem. Vem comigo, pode me dar o braço, não tenha medo.
O mato rasteiro dominava tudo. E não satisfeito de ter-se alastrado furioso pelos canteiros, subira pelas sepulturas, infiltrara-se ávido pelos rachões dos mármores, invadira as alamedas de pedregulhos esverdinhados, como se quisesse com sua violenta força de vida cobrir para sempre os últimos vestígios da morte. Foram andando pela longa alameda banhada de sol. Os passos de ambos ressoavam sonoros como uma estranha música feita do som das folhas secas trituradas sobre os pedregulhos. Amuada mas obediente, ela se deixava conduzir como uma criança. Às vezes mostrava certa curiosidade por uma ou outra sepultura com os pálidos, medalhões de retratos esmaltados.
–É imenso, hein? E tão miserável, nunca vi um cemitério mais miserável, que deprimente – exclamou ela, atirando a ponta do cigarro na direção de um anjinho de cabeça decepada. – Vamos embora, Ricardo, chega.
–Ali, Raquel, olha um pouco para esta tarde! Deprimente por quê? Não sei onde foi que eu li, a beleza não está nem na luz da manhã nem na sombra da noite, está no crepúsculo, nesse meio-tom, nessa ambigüidade. Estou-lhe dando um crepúsculo numa bandeja, e você se queixa.
–Não gosto de cemitério, já disse. E ainda mais cemitério pobre.
Delicadamente ele beijou-lhe a mão.
–Você prometeu dar um fim de tarde a este seu escravo.
–É, mas fiz mal. Pode ser muito engraçado, mas não quero me arriscar mais.
–Ele é tão rico assim?
–Riquíssimo. Vai me levar agora numa viagem fabulosa até o Oriente. Já ouviu falar no Oriente? Vamos até o Oriente, meu caro...
Ele apanhou um pedregulho e fechou-o na mão. A pequenina rede de rugas voltou a se estender em redor dos seus olhos. A fisionomia, tão aberta e lisa, repentinamente escureceu, envelhecida. Mas logo o sorriso reapareceu e as rugazinhas sumiram.
–Eu também te levei um dia para passear de barco, lembra?
Recostando a cabeça no ombro do homem, ela retardou o passo.
–Sabe, Ricardo, acho que você é mesmo meio tantã... Mas apesar de tudo, tenho às vezes saudade daquele tempo.
Que ano aquele! Quando penso, não entendo como agüentei tanto, imagine, um ano!
–É que você tinha lido A Dama das Camélias, ficou assim toda frágil, toda sentimental. E agora? Que romance você está lendo agora?
–Nenhum – respondeu ela, franzindo os lábios. Deteve-se para ler a inscrição de uma laje despedaçada: minha querida esposa, eternas saudades – leu em voz baixa. Pois sim. Durou pouco essa eternidade.
Ele atirou o pedregulho num canteiro ressequido.
–Mas é esse abandono na morte que faz o encanto disto. Não se encontra mais a menor intervenção dos vivos, a estúpida intervenção dos vivos. Veja – disse apontando uma sepultura fendida, a erva daninha brotando insólita de dentro da fenda –, o musgo já cobriu o nome na pedra. Por cima do musgo, ainda virão as raízes, depois as folhas... Esta a morte perfeita, nem lembrança, nem saudade, nem o nome sequer. Nem isso.
Ela aconchegou-se mais a ele. Bocejou.
–Está bem, mas agora vamos embora que já me diverti muito, faz tempo que não me divirto tanto, só mesmo um cara como você podia me fazer divertir assim. – Deu-lhe um rápido beijo na face. – Chega, Ricardo, quero ir embora.
–Mais alguns passos...
–Mas este cemitério não acaba mais, já andamos quilômetros! – Olhou para trás. –Nunca andei tanto, Ricardo, vou ficar exausta.
–A boa vida te deixou preguiçosa? Que feio – lamentou ele, impelindo-a para a frente. – Dobrando esta alameda, fica o jazigo da minha gente, é de lá que se vê o pôr-do-sol. Sabe, Raquel, andei muitas vezes por aqui de mãos dadas com minha prima. Tínhamos então doze anos. Todos os domingos minha mãe vinha trazer flores e arrumar nossa capelinha onde já estava enterrado meu pai. Eu e minha priminha vínhamos com ela e ficávamos por aí, de mãos dadas, fazendo tantos planos. Agora as duas estão mortas.
–Sua prima também?
–Também. Morreu quando completou quinze anos. Não era propriamente bonita, mas tinha uns olhos... Eram assim verdes como os seus, parecidos com os seus. Extraordinário, Raquel, extraordinário como vocês duas... Penso agora que toda a beleza dela residia apenas nos olhos, assim meio oblíquos, como os seus.
–Vocês se amaram?
–Ela me amou. Foi a única criatura que... Fez um gesto. – Enfim, não tem importância. Raquel tirou-lhe o cigarro, tragou e depois devolveu-o.
–Eu gostei de você, Ricardo!
–E eu te amei. E te amo ainda. Percebe agora a diferença?
Um pássaro rompeu cipreste e soltou um grito. Ela estremeceu.
–Esfriou, não? Vamos embora.
–Já chegamos, meu anjo. Aqui estão meus mortos.
Pararam diante de uma capelinha coberta: de alto a baixo por uma trepadeira selvagem, que a envolvia num furioso abraço de cipós e folhas. A estreita porta rangeu quando ele a abriu de par em par. A luz invadiu um cubículo de paredes enegrecidas, cheias de estrias de antigas goteiras. No centro do cubículo, um altar meio desmantelado, coberto por uma toalha que adquirira a cor do tempo. Dois vasos de desbotada opalina ladeavam um tosco crucifixo de madeira. Entre os braços da cruz, uma aranha tecera dois triângulos de teias já rompidas, pendendo como farrapos de um manto que alguém colocara sobre os ombros do Cristo. Na parede lateral, à direita da porta, uma portinhola de ferro dando acesso para uma escada de pedra, descendo em caracol para a catacumba.
Ela entrou na ponta dos pés, evitando roçar mesmo de leve naqueles restos da capelinha.
–Que triste que é isto, Ricardo. Nunca mais você esteve aqui?
Ele tocou na face da imagem recoberta de poeira. Sorriu, melancólico.
–Sei que você gostaria de encontrar tudo limpinho, flores nos vasos, velas, sinais da minha dedicação, certo? Mas já disse que o que mais amo neste cemitério é precisamente este abandono, esta solidão. As pontes com o outro mundo foram cortadas e aqui a morte se isolou total. Absoluta.
Ela adiantou-se e espiou através das enferrujadas barras de ferro da portinhola. Na semi-obscuridade do subsolo, os gavetões se estendiam ao longo das quatro paredes que formavam um estreito retângulo cinzento.
–E lá embaixo?
–Pois lá estão as gavetas. E, nas gavetas, minhas raízes. Pó, meu anjo, pó –murmurou ele. Abriu a portinhola e desceu a escada. Aproximou-se de uma gaveta no centro da parede, segurando firme na alça de bronze, como se fosse puxá-la. – A cômoda de pedra. Não é grandiosa? Detendo-se no topo da escada, ela inclinou-se mais para ver melhor.
–Todas essas gavetas estão cheias?
–Cheias?... Só as que têm o retrato e a inscrição, está vendo? Nesta está o retrato da minha mãe, aqui ficou minha mãe – prosseguiu ele, tocando com as pontas dos dedos num medalhão esmaltado embutido no centro da gaveta.
Ela cruzou os braços. Falou baixinho, um ligeiro tremor na voz.
–Vamos, Ricardo, vamos.
–Você está com medo.
–Claro que não. Estou é com frio. Suba e vamos embora, estou com frio!
Ele não respondeu. Adiantara-se até um dos gavetões na parede oposta e acendeu um fósforo. Inclinou-se para o medalhão frouxamente iluminado.
–A priminha Maria Emília. Lembro-me até do dia em que tirou esse retrato, duas semanas antes de morrer... Prendeu os cabelos com uma fita azul e veio se exibir, estou bonita? Estou bonita?... – Falava agora consigo mesmo, doce e gravemente. – Não é que fosse bonita, mas os olhos... Venha ver, Raquel, é impressionante como tinha olhos iguais aos seus.
Ela desceu a escada, encolhendo-se para não esbarrar em nada.
–Que frio faz aqui. E que escuro, não estou enxergando!
Acendendo outro fósforo, ele ofereceu-o à companheira.
–Pegue, dá para ver muito bem... – Afastou-se para o lado. –Repare nos olhos.
–Mas está tão desbotado, mal se vê que é uma moça...
Antes da chama se apagar, aproximou-a da inscrição feita na pedra. Leu em voz alta, lentamente.
– Maria Emília, nascida em vinte de maio de mil e oitocentos e falecida... – Deixou cair o palito e ficou um instante imóvel. – Mas esta não podia ser sua
namorada, morreu há mais de cem anos ! Seu menti...
Um baque metálico decepou-lhe a palavra pelo meio. Olhou em redor. A peça estava deserta. Voltou o olhar para a escada. No topo, Ricardo a observava por detrás da portinhola fechada. Tinha seu sorriso meio inocente, meio malicioso.
–Isto nunca foi o jazigo da sua família, seu mentiroso! Brincadeira mais cretina! – exclamou ela, subindo rapidamente a escada. – Não tem graça nenhuma, ouviu?
Ele esperou que ela chegasse quase a tocar o trinco da portinhola de ferro. Então deu uma volta à chave, arrancou-a da fechadura e saltou para trás.
–Ricardo, abre isto imediatamente! Vamos, imediatamente! – ordenou, torcendo o trinco. – Detesto este tipo de brincadeira, você sabe disso. Seu idiota! É no que dá seguir a cabeça de um idiota desses. Brincadeira mais estúpida!
Uma réstia de sol vai entrar pela frincha da porta tem uma frincha na porta. Depois vai se afastando devagarzinho, bem devagarzinho. Você terá o pôr-do-sol mais belo do mundo.
Ela sacudia a portinhola.
–Ricardo, chega, já disse! Chega! Abre imediatamente, imediatamente! –Sacudiu a portinhola com mais força ainda, agarrou-se a ela, dependurando-se por entre as grades. Ficou ofegante, os olhos cheios de lágrimas. Ensaiou um sorriso.
–Ouça, meu bem, foi engraçadíssimo, mas agora preciso ir mesmo, vamos, abra...
Ele já não sorria. Estava sério, os olhos diminuídos. Em redor deles, reapareceram as rugazinhas abertas em leque. Boa noite, Raquel...
–Chega, Ricardo! Você vai me pagar!... – gritou ela, estendendo os braços por entre as grades, tentando agarrá-lo.
–Cretino! Me dá a chave desta porcaria, vamos! – exigiu, examinando a fechadura nova em folha.
Examinou em seguida as grades cobertas por uma crosta de ferrugem. Imobilizou-se. Foi erguendo o olhar até a chave que ele balançava pela argola, como um pêndulo. Encarou-o, apertando contra a grade a face sem cor. Esbugalhou os olhos num espasmo e amoleceu o corpo. Foi escorregando.
–Não, não...
Voltado ainda para ela, ele chegara até a porta e abriu os braços. Foi puxando, as duas folhas escancaradas.
– Boa noite, meu anjo.
Os lábios dela se pregavam um ao outro, como se, entre eles houvesse cola. Os olhos rodavam pesadamente numa expressão embrutecida.
–Não...
Guardando a chave no bolso, ele retomou o caminho percorrido. No breve silêncio, o som dos pedregulhos se entrechocando úmidos sob seus sapatos. E, de repente, o grito medonho, inumano:
–NÃO!
Durante algum tempo ele ainda ouviu os gritos que se multiplicaram, semelhantes aos de, um animal sendo, estraçalhado. Depois, os uivos foram ficando mais remotos, abafados como se viessem das profundezas da terra. Assim que atingiu o portão do cemitério, ele lançou ao poente um olhar mortiço. Ficou atento. Nenhum ouvido humano escutaria agora, qualquer chamado. –Acendeu um cigarro e foi descendo a ladeira. Crianças ao longe brincavam de roda.

Uma crônica de Carlos Drummond de Andrade

Debaixo da Ponte
ANDRADE, Carlos Drummond de Andrade
Obra Completa,
Rio de Janeiro: José Aguilar Editora, 1967

Moravam debaixo da ponte. Oficialmente, não é lugar onde se more, porém eles moravam. Ninguém lhes cobrava aluguel, imposto predial, taxa de condomínio: a ponte é de todos, na parte de cima; de ninguém, na parte de baixo. Não pagavam conta de luz e gás, porque luz e gás não consumiam. Não reclamavam contra falta dágua, raramente observada por baixo de pontes. Problema de lixo não tinham; podia ser atirado em qualquer parte, embora não conviesse atirá-lo em parte alguma, se dele vinham muitas vezes o vestuário, o alimento, objetos de casa. Viviam debaixo da ponte, podiam dar esse endereço a amigos, recebê-los, fazê-los desfrutar comodidades internas da ponte.
À tarde surgiu precisamente um amigo que morava nem ele mesmo sabia onde, mas certamente morava: nem só a ponte é lugar de moradia para quem não dispõe de outro rancho. Há bancos confortáveis nos jardins, muito disputados; a calçada, um pouco menos propícia; a cavidade na pedra, o mato. Até o ar é uma casa, se soubermos habitá-lo, principalmente o ar da rua. O que morava não se sabe onde vinha visitar os de debaixo da ponte e trazer-lhes uma grande posta de carne.
Nem todos os dias se pega uma posta de carne. Não basta procurá-la; é preciso que ela exista, o que costuma acontecer dentro de certas limitações de espaço e de lei. Aquela vinha até eles, debaixo da ponte, e não estavam sonhando, sentiam a presença física da ponte, o amigo rindo diante deles, a posta bem pegável, comível. Fora encontrada no vazadouro, supermercado para quem sabe freqüentá-lo, e aqueles três o sabiam, de longa e olfativa ciência.
Comê-la crua ou sem tempero não teria o mesmo gosto. Um de debaixo da ponte saiu à caça de sal. E havia sal jogado a um canto de rua, dentro da lata. Também o sal existe sob determinadas regras, mas pode tornar-se acessível conforme as circunstâncias. E a lata foi trazida para debaixo da ponte.
Debaixo da ponte os três prepararam comida. Debaixo da ponte a comeram. Não sendo operação diária, cada um saboreava duas vezes: a carne e a sensação de raridade da carne. E iriam aproveitar o resto do dia dormindo (pois não há coisa melhor, depois de um prazer, do que o prazer complementar do esquecimento), quando começaram a sentir dores.
Dores que foram aumentando, mas podiam ser atribuídas ao espanto de alguma parte do organismo de cada um, vendo-se alimentado sem que lhe houvesse chegado notícia prévia de alimento. Dois morreram logo, o terceiro agoniza no hospital. Dizem uns que morreram da carne, dizem outros que do sal, pois era soda cáustica. Há duas vagas debaixo da ponte.