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Poeta - escritor - cronista - produtor cultural. Professor de Português e Literaturas. Especialista em Estudos Literários pela FEUC. Especialista em Literaturas Portuguesa e Africanas pela Faculdade de Letras da UFRJ. Mestre e Doutor em Literatura Portuguesa pela UFRJ. Nascido em Goiás, na cidade de Rio Verde. Casado. Pai de três filhos.

sábado, 19 de março de 2011

Crônica: Uma lição passageira ou "Tenente Gato Preto"

Uma lição passageira ou "Tenente Gato Preto"
Erivelto Reis
Dormir no ônibus é coisa que quase todo mundo faz. Algo como simpatia, garrafa pet, com água salgada, sobre o relógio marcador da luz, olhar o horóscopo de soslaio e pensamento positivo ao sair de casa. Pois o caso é que, nesse dia, eu dormia no ônibus e, ao meu lado, como eu constatei, ao ser acordado por ele, sentou-se um senhor.
O senhor que se sentou ao meu lado, ao perceber que eu despertara do meu sono-túmulo, surgido das profundezas dos estresses cotidianos dos passageiros cansados, solitários e resignados que trabalham pela melhoria, evolução e redenção de suas vidas, como fazem todas as pessoas em filas de banco e em salas de espera, conversou comigo. Mas esse era diferente: esse perguntou se poderia falar, se eu poderia ouvi-lo. Coisa que nem todo mundo faz. Quer dizer, as pessoas, em geral, já chegam falando, despejando angústias, opiniões, informações, frustrações e finais felizes, modificados pela imaginação e pela memória. Talvez esse fosse o caso, talvez esse fosse seu ocaso.
O ilustre passageiro, decerto, achou-me muito faceiro, e apresentou-se. Foi educado como gente que espera um lugar num céu; foi sincero, como se soubesse que não haveria vaga e contou-me, nos próximos trinta minutos, decorridos a partir dali, a história da sua vida. Como se fosse um livro que caísse aberto e deixasse ler, nas páginas impressas, justamente a retrospectiva que explica a história.
Não me recordo de seu nome, mais sei que seu codinome, seu nome de guerra, (sem aspas, porque, segundo o próprio, ele esteve lá) era “Tenente Gato Preto”. Soube que era médico, engenheiro, farmacêutico, exotérico e professor. Palestrante, católico, militante, pugilista e escritor. Militar do exército, da marinha, do serviço secreto e da aeronáutica. Padrinho do filho do ministro, primo do amigo do general, motorista do marechal, vigia da catedral. Soube que tomou Monte Castelo com a faca nos dentes, que comeu carne humana, italiana, culinariteralmente.
Ah, “Tenente Gato Preto”, tudo isso, assim enumerado, como lista de supermercado, pode não dar a devida dimensão do quanto o senhor me deixou bem impressionado. Ouvi suas histórias, de sorte, de morte, de vida sem norte, de orgulho, mergulho no poço obscuro da esperança e da obstinação. Palavras vindas da desinibição de quem parecia não ter vergonha das fantasias e das lembranças que trazia, guardadas no coração.
O senhor reclamou da política, da pobreza e da poluição. Disse que, apesar de ter ido à guerra, seu corpo jamais tivera nem marcas de injeção. E nesses breves momentos, deixou-me, de presente, uma lição de humanidade. Em seus olhos eu vi grandeza e dignidade; coisas que a humanidade, às vezes, parece conhecer só de passagem. Seus olhos brilhavam ao refletir o conteúdo guardado no baú de suas recordações, repleto de discutível, duvidoso e valioso tesouro, que vale mesmo pela emoção que evoca e pela reflexão que sugere: a de que um único dia pode servir como tema de um belo romance e que uma vida inteira, mesmo narrada em prece, dependendo de quem a escreve, pode não servir para produzir, sequer, uma única crônica que preste.