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Poeta - escritor - cronista - produtor cultural. Professor de Português e Literaturas. Especialista em Estudos Literários pela FEUC. Especialista em Literaturas Portuguesa e Africanas pela Faculdade de Letras da UFRJ. Mestre e Doutor em Literatura Portuguesa pela UFRJ. Nascido em Goiás, na cidade de Rio Verde. Casado. Pai de três filhos.

sábado, 24 de março de 2012

Crônica: "Nascer velho e morrer criança" - Marcos César e Chico Anysio

Nascer velho e morrer criança


Marcos César / Apresentada por Chico Anysio



Nós temos o direito de sonhar! E o meu sonho é o de ter o poder de ser o videocassete de mim mesmo!... Ter um controle remoto que me permitisse adiantar ou atrasar a vida. Eu poderia adiantar e entrar na percepção do futuro ou poderia recuar e parar no momento que me tivesse sido maravilhoso, talvez até eternizar um orgasmo!...

Eu faria, assim, uma edição e teria uma fita só com os melhores momentos da minha vida!... Mas uma fita só não bastaria. Teria de haver várias, por que eu sou um cara de poucas queixas. O importante seria mesmo esse controle remoto, pois eu poderia recuar a fita e me emocionar outra vez com o nascimento de meus filhos; depois eu a adiantaria e veria todos eles crescidos e eu, preocupado…O que serão na vida ? O que terão ? O que farão ?…

Não! Então eu volto, volto, volto, volto, volto, e me vejo outra vez em Maranguape, empinando pipa, jogando pião, escanchado num cavalo de pau, naquela rua de terra batida, onde eu era Tom Mix, eu era Buck Jones, eu era Palance, Cassidi… Eu nu, tomando banho no açude, paquerando calcinhas e sutiãs pendurados nos varais, imaginado seus recheios…

Não! Com este controle remoto eu seria um super-herói: “Eu sou Ulisses, eu tenho poderes!” Mas eu só queria mesmo um poder. O poder de fazer a vida como acho que a vida deveria ser... Acho que o homem deveria nascer com oitenta anos. Nasceria com oitenta anos, iria ficando mais novo, mais novo, mais novo, mais novo, mais novo até… morrer de infância!

Chego inclusive a imaginar uma mãe comunicando o nascimento do filho:

– Menina, meu filho nasceu! Pensei que não fosse nascer mais, tava encruado!

–Nasceu com oitenta e quatro anos! Mas perfeitinho: um metro e setenta e seis, setenta e dois quilos. Eu ia botar o nome de Luis Cláudio, mas ele próprio foi ao cartório e se registrou como Haroldo!

E nos berçários, aquela fila de cadeiras de balanço, com os velhinhos todos sentados... Tossindo, pigarreando. Todos assistidos por geriatras, já que, padecendo eles todos os males comuns aos recém-nascidos: gota, artritismo, lumbago, reumatismo… O homem nasceria com oitenta anos, aos sessenta casaria com uma mulher de cinquenta e nove, mas com uma vantagem: a cada dia, a cada semana, a cada mês, ela ficaria mais e mais jovem, até se transformar numa gata de vinte!

Com oitenta anos nasceria rico, sábio e... aposentado! A partir de então, passaria a ganhar menos, menos; entraria para a faculdade, desaprenderia tudo!… Voltaria àquele estágio de ingenuidade, de burrice, de pureza!

Depois, a bicicleta, o velocípede, desaprenderia a andar, esqueceria como engatinhar. Então, o voador; do voador para o chiqueirinho, do chiqueirinho para o berço, as trocas de fraudas, aquelas três gotas de remedinho no ouvido, o chá de erva-doce para dorzinha de barriga, a chuca, o peito da mãe… e pararia de chorar!

Mas a vida, então teria que ser recriada, o mundo teria que regredir séculos... Cabral e Colombo desdescobririam o novo mundo, o homem desinventaria a roda, atingiria o desconhecimento da pólvora e do fogo, até chegar a Adão, o último homem. O último, primeiro! A quem Deus, colocando-o sobre a sua mão, em vez de lhe soprar a vida, o inspiraria novamente para dentro de si mesmo…


PS: Apresentada em um comercial do videocassete Sharp, nos anos 80.

Lembra muito o conto "O Curioso Caso de Benjamin Button":
…"Eu nasci em circunstâncias incomuns."

 Adaptação do conto de 1920 de F. Scott Fitzgerald sobre um homem que nasce com oitenta e poucos anos e rejuvenesce a cada dia que passa. Um homem, como qualquer um de nós, que não pode parar o tempo.


Poema: Mundo Moderno - Chico Anysio

Mundo Moderno


Chico Anysio



Mundo moderno, marco malévolo,

mesclando mentiras,

... modificando maneiras, mascarando maracutaias,

majestoso manicômio.

Meu monólogo mostra mentiras,

mazelas, misérias, massacres,

miscigenação, morticínio –

maior maldade mundial.

Madrugada, matuto magro,

macrocéfalo, mastiga média morna.

Monta matungo malhado munindo machado,

martelo, mochila murcha, margeia mata maior.

Manhãzinha, move moinho,

moendo macaxeira, mandioca.

Meio-dia mata marreco, manjar melhorzinho.

Meia-noite, mima mulherzinha mimosa,

Maria morena, momento maravilha,

motivação mútua, mas monocórdia mesmice.

Muitos migram, macilentos, maltrapilhos.

Morarão modestamente, malocas metropolitanas,

mocambos miseráveis.

Menos moral, menos mantimentos,

mais menosprezo.

Metade morre.

Mundo maligno, misturando mendigos maltratados,

menores metralhados, militares mandões,

meretrizes, marafonas, mocinhas, meras meninas,

mariposas mortificando-se moralmente,

modestas moças maculadas,

mercenárias mulheres marcadas.

Mundo medíocre.

Milionários montam mansões magníficas:

melhor mármore, mobília mirabolante,

máxima megalomania,

mordomo, Mercedes, motorista, mãos…

Magnatas manobrando milhões,

mas maioria morre minguando.

Moradia meia-água, menos, marquise.

Mundo maluco, máquina mortífera.

Mundo moderno, melhore.

Melhore mais, melhore muito,

melhore mesmo.

Merecemos.

Maldito mundo moderno,

mundinho merda.
Rio antigo


(Nonato Buzar e Chico Anysio)





Quero um bate-papo na esquina

Eu quero o Rio antigo

Com crianças na calçada

Brincando sem perigo

Sem metrô e se frescão

O ontem no amanhã

Eu que pego o bonde 12 de Ipanema

Pra ver o Oscarito e o Grande Otelo no cinema

Domingo no Rian

Me deixa eu querer mais, mais paz



Quero um pregão de garrafeiro

Zizinho no gramado

Eu quero um samba sincopado

Baioba, bagageiro

E o desafinado que o Jobim sacou

Quero o programa de calouros

Com Ary Barroso

O Lamartine me ensinando

Um lá, lá, lá, lá, lá, gostoso

Quero o Café Nice

De onde o samba vem

Quero a Cinelândia estreando "E o Vento Levou"

Um velho samba do Ataulfo

Que ninguém jamais agravou

PRK 30 que valia 100

Como nos velhos tempos



Quero o carnaval com serpentinas

Eu quero a Copa Roca de Brasil e Argentina

Os Anjos do Inferno, 4 Ases e Um Coringa

Eu quero, eu quero porque é bom

É que pego no meu rádio uma novela

Depois eu vou à Lapa, faço um lanche no Capela

Mais tarde eu e ela, nos lados do Hotel Leblon



Quero um som de fossa da Dolores

Uma valsa do Orestes, zum-zum-zum dos Cafajestes

Um bife lá no Lamas

Cidade sem Aterro, como Deus criou

Quero o chá dançante lá no clube

Com Waldir Calmon

Trio de Ouro com a Dalva

Estrela Dalva do Brasil

Quero o Sérgio Porto

E o seu bom humor

Eu quero ver o show do Walter Pinto

Com mulheres mil

O Rio aceso em lampiões

E violões que quem não viu

Não pode entender

O que é paz e amor



Crônica - Doente: ou da Lucidez Perene - Erivelto Reis

DOENTE: OU DA LUCIDEZ PERENE

Erivelto Reis


Às vezes, parece que o mundo está doente. Parece que todo mundo está doente. Parece que doente é quem não sente. Parece que a gente é que é doente. É muito problema, é muito sintoma. É muita gente ignorando o drama. É falta de atendimento, de entendimento. Figuração fajuta, fingimento. É Elixir de Preguiça contra o envelhecimento; são pílulas, drágeas e emplastros de Problema é Seu, consumidos sem consulta médica, social, ética e estética. Sem falar das prescrições do SUS; ai, Jesus!

Sem Uma Solução que preste, já há quem vá dissimulando as caras, as expressões e as dores. Quem use a bula dos discursos, com falsas palavras, falsos abraços de urso. É muito abuso! Há quem vá cuspindo e simulando amores. Quem vá forjando atestado, praticando pequenos atentados, suturas de injúrias, pisando nos calos caluniados. Deixando o sistema cada vez mais nervoso. Como seria bom se o xarope sempre fosse gostoso. Mas não é. Nem é bom pra tosse. E quanto mais amargo, tanto maior a dose. Essas doenças eu não tenho, mas, de vez em quando, eu sofro por causa delas, em doses alopáticas, em frascos feios ou belos, que são pagos em pequenas parcelas.

Tenho sim, igual a tantos, sintomas de Lucidez Perene. E ela me faz enxergar as coisas como são. Quem sabe, apenas altere a minha percepção. A doença é de fácil cura. Se tratada com acupuntura, exposição permanente a ícones da cultura, formas e expressões de arte – daqui e de qualquer parte –, cachaça pura, paixão e amor intensos; Emoção e energias positivas, lágrimas de alegria que empapam umedecidos lenços. Filhos brincando, amigos queridos, filmes românticos, música boa, daquelas de se ouvir à toa, bem alto, mesmo que o vizinho se doa. A combinação e a quantidade de medicamentos podem variar. Não é difícil de tratar, mas pode contagiar. Assim como a doença que faz o escritor utilizar longas sequências de palavras, vazias ou não, mas terminadas em “ar”.

Basta uma leitura, uma metáfora da observação do mundo, atenta ou displicente, em qualquer jornal. Da seção de política à de economia, passando pela coluna social, e já é mais que suficiente para o sujeito em questão começar a passar mal. A Lucidez Perene faz alterar o tom e/ou o volume da voz. Faz o indivíduo assumir a postura de paladino, com a força de reclamar por dois, por muitos, por nós. A vista também se altera: as entrelinhas e os bastidores dos fatos ficam todos à mostra e o sujeito enxerga mil coisas, das quais nem sempre gosta.

Lucidez Perene não tem nada a ver com a idade. Jovens podem contrair; velhos podem propagar. Não é só coisa de homem; não é só coisa para a mulher. Lucidez Perene não é pra quem quer. Nem pra quem pode. É para os sedentários, para os que exercem qualquer profissão, excetuando-se alguns (muitos?) políticos, pseudoartistas e algumas personalidades do esporte. É uma questão de azar ou de sorte. É um caso de vida e morte. Lucidez Perene não se espalha pelo ar, não se espalha como quem passasse um creme. Não se saboreia como se mascasse um chiclete. Quanto mais se lê, quanto mais se pesquisa, quanto mais se reflete, mais chance se tem de pegar.

Os lúcidos crônicos têm, como sintoma específico, a motivação, aparentemente ilimitada, de se indignar, reivindicar e de protestar. E, em casos gravíssimos, adquirem a capacidade de se articular para modificar a dura, a impura, a inadequada realidade. A Lucidez Perene pode evoluir galopante para a metástase da verdade.

Quem tem Lucidez Perene não é um caso perdido, de fato. Os colegas e parentes “pagam o pato”; a família e os amigos, vez ou outra, o confundem com um chato. O patrão pode confundi-lo com um ingrato. Mas os que sofrem a mesma sina o veem como um revolucionário. Essa doença tem cura, é crônica, aguda e pode ser sazonal. Encontrar um lúcido perene é bastante comum e pode ser, paradoxalmente, difícil de achar, tal qual agulha num palheiro. Ele é aquele camarada, quem tendo muito de tudo ou mesmo não tendo nada, parece pensar e trabalhar o dia inteiro para pagar pelas coisas que não se compram com dinheiro.

sábado, 17 de março de 2012

Crônica: Quentinha de Sorvete - Erivelto Reis

                                                  QUENTINHA DE SORVETE
                                                                                         Erivelto Reis



Meu coração parece uma quentinha de sorvete: se derrete por qualquer ato de calor humano. A generosidade me alegra. O respeito me inspira. O amor me enleva. O carinho me emociona. Gente educada me fascina. Amizades sinceras me motivam. Quem sabe se comunicar me encanta. A beleza da bondade, da delicadeza e da arte se entranha nas almas como um “perfume esquizofrênico”, indefinido, mas reconheço seu cheiro por onde quer que eu passe.

Gosto de saber que há palavras ditas em horas precisas e inesquecíveis. Um “bom dia”, um “por favor,”, um “obrigado”, um “eu te amo”, um “até logo”... desde que seja sincero. É só o que espero. Gosto de acreditar que há um jeito de tocar, de segurar na mão, que parece dizer que a ventania vai passar. Gosto de saber que meu amor me ama até com o olhar. Me derreto mesmo. Me derreto muito. Me derreto todo.

É certo que, pra muita gente, a vida tem sido madrasta, tem sabor amargo, tem sido trágica, hemorrágica. Sei que há dificuldade, tristeza, dissabor, desigualdade. Que a vingança é um prato vazio que se come cru e frio. Afirmar não posso, mas desconfio que há um treino, um ensaio. Um olhar de soslaio pras coisas boas da vida enquanto ainda não estão escolhidas, embaladas e nos são enviadas. O mais é conversa, peripécia, peça de oratória que confunde tanto, que confunde mesmo, que confunde muito.

Assim, há quem diga que a lágrima é dor construída, líquida, vária, crônica e esporádica, por quem pena por ter pena de pensar em dó. A lágrima é a foz do rio de quem vive só. É ansiedade repartida e refletida no peso de quem fica com a tonelada, quem leva pisada, carrinho e falta no jogo da vida. Saber disso me faz chorar mesmo, chorar muito... chorar tanto.

As conquistas, as emoções positivas, vividas ou testemunhadas, também fazem do meu coração uma quentinha de sorvete. Mas não é só comigo. Outras pessoas talvez entendam o que eu digo. O coração de um pai que conduz a única filha ao casamento, num sagrado altar, e que, depois de receber um agradecimento em uma pista de dança, começa a chorar, é uma quentinha de sorvete. O coração de uma mãe assistindo os seus filhos que jogam futebol num campinho improvisado, na lateral de casa, ou que busca a filha, linda e talentosa, na Universidade, é uma quentinha de sorvete. Consideração, lembrança no aniversário, homenagem, presente desinteressado, aplauso, poemas descobertos ao acaso e memorizados, são quentinhas de sorvete. Me emocionam muito, emocionam tanto, emocionam mesmo.

Queria que mais emoção, valor e consideração fizessem com que os corações das pessoas transbordassem de felicidade. Fossem componentes de belas histórias. Queria que cada ruga, linha de expressão, cabelo branco ou olheira fossem índices de vitórias. Epígrafes de glórias. Belas trajetórias. Queria isso para muitas vidas, para a minha vida toda. Para a minha vida mesmo. Queria isso pra você também. Um coração caloroso e feliz: tal qual quentinha de sorvete, pulsando, batendo, sem susto, sem despedida... e as pessoas saboreando a Fraternidade, o Amor e a Esperança: o derretido néctar do napolitano sorvete que adoça a vida.